Menininha levaram-me a um jardim em Castelo Branco. Durante anos, daquele passeio, retive o assombro que me causaram duas grandes escadarias repletas de estatuária – uma, com monarcas portugueses, a outra, com os apóstolos – bem como um varandim ponteado por mais figuras.
Conservei a ideia que a estatuária não era produto de cinzel que tivesse lavrado a pedra com empenho, nunca questionando, até à atual visita, se o granito se teria imposto, ao artífice, pela dureza.
Tantas imagens de vulto perfiladas sobre as suas peanhas, à criança que eu era, afiguraram-se ser uma guarda de honra que nos acolhia, e, ao mesmo tempo, uma espécie de livro histórico e hagiológico que nos ofertavam.
A integração do jardim na paisagem urbana, os canteiros de buxo, os lagos, os repuxos e vasos de flores, ou não reparei neles, ou foram olvidados de todo.
Confirmo hoje, essa memória de criança, o grande valor do Jardim do Paço Episcopal de Castelo Branco reside, na presença massiva de estatuária barroca de cariz alegórica a propor-nos um discurso específico de leitura.
*Uma Quinta de Recreio, para os bispos da Guarda, em Castelo Branco*
Talvez pelo clima ser mais ameno na cidade albicastrense, que na sede da sua diocese, D. Nuno Noronha, Bispo da Guarda, estabeleceu, no fim do século XVI, uma Quinta de Recreio com um palácio, em Castelo Branco.
As primeiras Quintas de Recreio apareceram no contexto cultural renascentista português, foram uma forma muito especifica de modelação da paisagem portuguesa e de um modo do viver português.
Eram compostas por espaços diferenciados no interior de muros (edifícios, mata, horto de recreio, pomar/horta).
A produção e o lazer tinham, numa Quinta de Recreio, relações de continuidade, porque em áreas confinadas à produção pontuavam elementos arquitetónicos e escultóricos que definiam agradáveis locais de estada, em que a sombra, a luz, a água, os aromas e os sons se conjugam para criar uma ambiência peculiar.
O Paço da Quinta de Recreio dos Bispos da Guarda, em Castelo Branco, terminado em 1598, estilisticamente falando, era uma estrutura de gosto tardo-renascentista.
O vetusto palácio quinhentista foi reedificado, engradecido e melhorado por iniciativa do bispo D. João de Mendonça (1673/1736) que determinou, em paralelo, a execução dum jardim formal, nos logradouros associados ao edifício, e um upgrade em toda a quinta.
O programa escultórico do jardim formal, escolha pessoal de D. João de Mendonça, colocou em confronto o Mundo Espiritual da Religião e da Moral Cristã, com o Mundo Material -suportado pela História, pela Geografia e pelos Elementos.
Destaca-se uma estrutura narrativa relacionada com a intervenção divina (pela fé e pelos valores éticos da religião católica) e a validação da nação e reino portugueses, pela representação dos monarcas das diferentes dinastias.
Os diferentes elementos, que a sua erudição escolheu, criaram um discurso visual de imagens que dialogam dinamicamente e estabelecem cenários pedagógicos de cariz moralizante, que não deixam também de ser lúdicos e sensoriais.
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Localização do Paço, do Jardim e do Passadiço que hoje dá acesso ao do Parque da Cidade no espaço da antiga quinta de Recreio dos Bispos |
*O Bispo D. João de Mendonça edifica um jardim barroco à italiana*
Para compreendermos a intervenção de D. João de Mendonça, neste espaço, importa conhecer o percurso da sua vida.
Nascido em Estremoz, a 12 de Junho de 1673, era um filho secundogénito da Casa dos Condes de Vale de Reis; foi doutor em Direito Canónico e professor na Universidade de Coimbra; tesoureiro-mor da Sé de Évora; conselheiro de Estado do rei D. João V e seu sumilher da cortina; prelado de honra do Papa Clemente XI e Bispo da Guarda. Morreu em Castelo Branco, no Paço, a 2 de Agosto de 1736, após um longo período acamado e impossibilitado de deambular pela quinta.
Do jardim, elaborado sob a sua batuta, documentalmente não temos o risco. Porém, não temos dúvidas que foi em consonância com os critérios barrocos do seu tempo e em decalque do formulário dos jardins italianos, que D. João de Mendonça tivera ocasião de visitar, durante os três anos em que viveu em Roma, que a decisão nasceu.
Por esse conhecimento direto, o prelado escolheu para o jardim formal na Quinta de Recreio de Castelo Branco: os giochi (jogos de água à italiana), o traçado geométrico dos patamares; o aproveitamento das diferenças topográficas para usufruto das vistas; a plantação de sebes (de murta, buxo e de árvores de espinho) e a proliferação da estatuária.
O período da construção do jardim ocorreu entre 1715 e 1725 (a primeira data é exibida, junto de São João Baptista, e a segunda, junto de Moisés).
Em 1726, passava-se, por via aérea, do jardim formal (fechado e murado, e não aberto, com gradeamento, como na atualidade) para as outras zonas da quinta de recreio (atual Parque Público) igualmente envolvidas por um extenso muro que a todas abarcava. Essa passagem era efetuada sobre um passadiço sustentado por arcos. Sobre ele se passava do palácio e do jardim formal, aos demais espaços da quinta de recreio sem necessidade de sair além muros e sem o recurso a vias públicas.
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Rua Bartolomeu da Costa (1910), vejam-se os muros cegos que delimitavam os terrenos da quinta de recreio, e os três arcos do passadiço sobre a rua |
A distribuição da água, era feita a partir dum grande tanque, depósito das águas pluviais, de onde era levada, pela ação da gravidade, através de uma rede complexa de canos, chegando aos terraços inferiores e ao tanque da quinta, a partir do qual se fazia a rega dos talhões.
Só em 1771, com a criação da diocese de Castelo Branco, na sequência de D. José I elevar a vila, a cidade, foram a residência, o jardim e o demais elementos do conjunto da quinta de recreio, tornados no Paço da Episcopal de Castelo Branco.
*A ideia por detrás da consagração do jardim a São João Baptista*
Na mísula que suporta a imagem de São João Baptista, há uma inscrição esclarecedora que nos informa “Das mulheres não nasceu maior Homem do que S. João Baptista, ao qual pregador do deserto, João entre todos os mais humilde dedicou este retiro, no ano do Senhor de 1725 e 13º do seu episcopado”.
Assim, D. João de Mendonça consagrou o novo jardim formal, a São João Batista, o pregador e profeta que escolheu o deserto da Judeia, como o local de retiro, para o se aperfeiçoar, para contemplar e para orar.
Designando-o como Jardim de São João Batista e declarando, o bispo, que o seu jardim tinha a função de “retiro”, percebe-se que este espaço foi preferencialmente concebido como um lugar para o aperfeiçoamento, a contemplação e a ilustração.
A imagem de São João Batista foi exposta sobre portal, junto ao Jardim de Buxo, que dava a um olival, e a figura de Santa Maria Egipcíaca, outra asceta que se retirou igualmente para o deserto da Judeia, com os mesmos fins, ocupou lugar, noutro portal, junto ao Tanque de Moisés.
É a associação das duas imagens que nos dá conta da intenção programática do prelado em estabelecer, como que um compromisso entre este jardim formal e palaciano e o “deserto”, ambos os espaços tidos na sua funcionalidade de “retiro”.
Ao lado do Antigo Paço Episcopal, o jardim, tem acesso pela Rua Bartolomeu Costa (a antiga rua da Corredora) e está delimitado por gradeamentos de ferro e muros de alvenaria rebocada.
A entrada, hoje, faz-se lateralmente, por um Centro de Acolhimento dos Visitantes, que dá ao patamar criado, em 1936, sob projeto do engenheiro Manuel Tavares dos Santos.
A execução daquele projeto deslocalizou, para este terraço, alguma estatuária e criou novos elementos decorativos. Só o portal é do século XVIII, foi reaproveitado das hortas ajardinadas da quinta de recreio, tudo o mais, data do século XX: o gradeamento, os canteirode buxo e os painéis murais revestidos a azulejaria.
Não vejo a necessidade perde muito tempo, aqui, mesmo que se reconheça que, numa tentativa de dar continuidade ao espírito do lugar, o desenho teve o critério de mimetizar o jardim antigo.
Nos dois lances da escadaria que sobem do patamar da entrada para o terraço central, localizam-se as esculturas, em granito, dos quatro arcanjos divinos -São Gabriel, São Rafael, São Miguel e São Uriel (Anjo Custódio) - elas dão-nos o mote sobre a característica mais notável do Jardim do Paço Episcopal de Castelo Branco, a imaginária.
Seguem-se as demais áreas, em terraços, delimitados por balaustradas e gradeamentos, articuladas entre si por escadas, correspondem ao Jardim Formal do Antigo Paço Episcopal. Subindo a escadaria vamos à descoberta deste jardim barroco.
A parte mais monumental é, sem dúvida, o terraço do Jardim de Buxo, composto por 24 talhões, organizados em torno de cinco lagos (alusão às cinco chagas de Cristo), um central e quatro periféricos.
Dois eixos principais de circulação orientam-se ao lago central. Com orientação este-oeste, o mais longo é marcado, a poente, pela imagem de São João Baptista. Neste percurso, foram colocadas as figuras de quatro continentes (Asia, Europa, África e América). No outro caminho (com orientação norte-sul) localizam-se as quatro estações: Primavera, Inverno, Verão e Outono.
À volta do lago central, imperam as esculturas de vulto das Virtudes (ou seja das disposições estáveis de praticar o bem aperfeiçoadas pelo hábito). Apresentam-se, aqui, as Virtudes Teologais (Esperança, Fé e Caridade) e as Virtudes Cardinais (Justiça, Fortaleza, Temperança e Prudência) e uma Virtude Moral (a Lisura).
A Fortaleza e a Temperança, duas das virtudes cardeais |
A Esperança uma das Virtudes Teológicas
Nos quatro cantos do jardim de Buxo situam-se, por sua vez, os anjos que simbolizam os “Novíssimos do homem”, conceito antigo, expresso nas Sagradas Escrituras, e temática extremamente cara ao Barroco.
Na doutrina católica, chamam-se Novíssimos aos acontecimentos que ocorrerão ao homem no fim da vida: a Morte; o Juízo Final (o julgamento, no tribunal de Deus, com a pronuncia da sentença, o destino eterno que os seus atos em vida lhe determinam). O destino a que o homem fica sujeito será, ou o Inferno (o castigo pelo mal cometido), ou o Paraíso (o prémio pelo bem realizado) .
No percurso que circunda o terraço central dominam os signos do zodíaco, apresentados nos doze meses do ano.
O esquema de distribuição da estatuária colhido do trabalho da Ana Leite “O Jardim em Portugal, nos séculos XVII e XVIII”, alerta-nos, sobre linhas dominantes na disposição da imaginária deste patamar.
Para a autora, se à primeira vista, ocorre uma disposição relativamente livre da estatuária, uma observação mais pormenorizada, permite detectar uma lógica interna bastante bem ancorada.
Segundo aquela autora é um fato imediatamente patente o agrupamento das Virtudes Cardinais, em redor do lago central, acompanhados das Virtudes Teologais e de uma Virtude Secundária (Lisura).
Composição da imaginária no Terraço de Buxo | |||||||||||
Paraiso | Escorpião | Peixes | Verão | Outono | Caranguejo | Aquário | Inferno | ||||
Fogo | |||||||||||
Caça | Caridade | Lisura | |||||||||
Ásia | Fortaleza | Temperança | Europa | ||||||||
Touro | Esperança | Fé | |||||||||
Balança | Capricórnio | ||||||||||
Anjo | Sagitário | Gémeos | Virgem | Carneiro | Primavera | Inverno | África | Morte |
Do mesmo modo se instalaram nos extremos do terraço, mas no mesmo eixo, as referências alegóricas aos quatro continentes, enquanto no outro eixo (norte-sul) foram colocadas frente a frente as quatro estações do ano.
Apenas os signos astronómicos parecem estar dispostos de forma mais errática; sendo, ainda provável, que a falta de referências simétricas dos elementos (Água, Ar e Terra) de que só existe o Fogo, se possa dever ao fato do programa, estabelecido por D. João de Mendonça, ter permanecido incompleto.
No entanto, o que melhor caracteriza a organização deste espaço, do ponto de vista alegórico, é, sem dúvida, a colocação nos vértices de grandes conceitos dos “novíssimos do homem” que se apresentam em oposição tipológica, ou seja: o Paraíso encontra, no outro extremo dum eixo imaginário o Inferno e, na diagonal, a Morte; enquanto o Anjo do Juízo Final encontra, no outro extremo do eixo, a Morte, e na diagonal o Inferno.
Este esquema revela o quadro moralizante que se quis dar ao conjunto iconográfico, fazendo depender aquilo que parece ser o mundo (os quatro elementos e os signos astrológicos) de uma prática exemplar das virtudes, sem as quais, uma alma católica, no desfecho da sua vida, será infalivelmente, devido às suas ações, remetida para o castigo divino.
No Lago das Coroas, de formato retangular, evidenciam-se três repuxos de pedra com um invulgar tratamento escultórico -corpos de golfinhos que se enrolam entre si, em espiral, e que, na área das barbatanas caudais, são rematados por uma coroa. A composição remete-nos para uma alusão neo-manuelina.
*As Escadarias dos Reis e dos Apóstolos*
Nas extremidades do Lago das Coroas, surgem duas escadarias, a este, a dos reis portugueses, e, a oeste, a dos apóstolos.
As escadarias dos Apóstolos e dos Reis situam-se em relação simétrica e oposta uma à outra, enquadrando o Lago das Coroas, e ambas ligam o patamar do Jardim de Buxo a níveis superiores.
Na Escadaria do Reis marca presença o poder temporal em território nacional. A Henrique de Borgonha (conde de Portucale e pai de D. Afonso Henriques, o primeiro rei português), situado no centro do patamar superior, sucedem-se, mais ou menos por ordem cronológica, ao longo das balaustradas que enquadram as escadas e pelo varandim que as une, os monarcas portugueses das três primeiras dinastias.
Sobressaem as figuras dos reis após a Restauração, D. João IV, D. Pedro II, D. João V, D. José (que não era rei, à data do falecimento do bispo, mas que foi acrescentado, depois em lugar deixado vago).
Estas figuras dos monarcas têm um grande destaque, não só pela sua localização no patamar sobre o jardim central que liga com a escadaria dos Apóstolos, mas pela própria aparente imponência que a sua colocação a um nível mais elevado e de frente para o Jardim, induz no observador.
Em oposição, encontramos a memorização (literal, neste caso) dos três Filipes de Habsburgo, reis estrangeiros do período da União Ibérica, que, ao lado, dos reis das legitimas dinastias portuguesas, estão representados numa posição e escala inferiores.
A inclusão do Conde D. Henrique e da rainha Santa Isabel compreende-se, considerando que são individualidades que faziam parte do discurso historiográfico oficial de heroicização e santificação, no contexto nacional e nacionalista.
Encontramo-nos na lógica que visa conferir a um espaço ajardinado uma dimensão compêndio em termos de historiografia portuguesa.
Na escadaria dos Apóstolos os plintos que acompanham a balaustrada estão as figuras dos doze apóstolos e dos quatro evangelistas.
A este conjunto de carácter religioso junta-se outro com os 4 doutores da igreja que se situa nas escadas que davam do Paço para o jardim.
Ana Leite identifica nestas escadarias uma hierarquia de posições, que orientam o jardim entre dois pólos: o pólo espiritual, representado pela Escadaria dos Apóstolos e o pólo temporal representado pela Escadaria do Reis.
De qualquer forma a interação destes dois dispositivos dá conta da interseção da história sagrada e da história nacional, retomando fórmulas que já se iam experimentado, desde o século XVI, embora agora de uma forma mais exaustiva e seriada.
A sul do Lago das Coroas e a um nível inferior, encontra-se o originalíssimo Jardim Alagado, o único sem estatuária.
Está composto por um tanque de forma trapezoidal, preenchido por alegretes curvilíneos em alvenaria com plantas.
A composição parece ter sido pensada à imagem e semelhança dos jardins dos peristilos das casas romanas, possível influência direta de dispositivos idênticos que o prelado viu em Roma.
A cascata de Moisés, de degraus rusticados, vertendo água para um grande tanque, obedece a um programa específico que visa conferir à água, elemento preponderante na arquitetura dos jardins, um papel místico.
Uma vez que se situam num plano sobre elevado, cascata e tanque eram os elementos hidráulicos chave de toda a distribuição hídrica do jardim, funcionando como um distribuidor de água sob pressão, permitiam o funcionamento dos jogos de água nos lagos.
No cimo da cascata, a imagem de Moisés segura as tábuas da lei. Nelas está escrito: “Amarás ao Senhor teu Deus e ao teu próximo como a ti mesmo”, ou seja, dois dos Dez Mandamentos.
A alusão ao gesto fundador de Moisés encontra-se patente na inscrição da base: “Feriu a pedra, brotaram águas e as torrentes transportaram” (Salmos, v 77) .
À boca da cascata, sobre os pilares que rematam o muro que a enquadra, as figuras de Santa Ana, a um lado, e, da Samaritana, do outro.
Do lado Nascente, desenvolve-se um balcão com balaústres que funcionava como miradouro sobre o jardim.
*A jeito de conclusões de uma visita*
A deambular pelo jardim formal do Antigo Paço Episcopal, o visitante ainda continua a usufruir as sensações ligadas ao uso da água e a desvendar gradualmente cenários, essa matéria prima que esteve na razão da constituição de jardins alegóricos barrocos portugueses. Entre esses jardins, o do Paço Episcopal de Castelo Branco é um dos mais simbólicos e relevantes.
O espaço hoje visitável era, na sua origem, apenas uma parte de um mais vasto percurso de deambulação que, se fazia de e para o palácio, no interior de uma área mais dilatada e murada, correspondendo hoje em grande parte ao Parque da Cidade, situado do outro lado da rua.
Modificações operadas durante os séculos XIX e XX interromperam a relação de confinidade que na forma usual duma quinta de recreio, naturalmente existia entre a área de jardim e os demais espaços.
O programa escultórico do jardim formal, escolha pessoal do bispo D. João de Mendonça, colocou em confronto o Mundo Espiritual, com os limites que lhe impõem a Teologia e a Moral, com o Mundo Material (suportado pela História, pela Geografia, pelos Elementos). Confronto que o transiente do século XXI irá perder, se não descodificar o verdadeiro "espírito do lugar", construído pelo significado ou simbolismo do conjunto da imaginária aqui presente.