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Comprado o bilhete e sentada na minha cadeira de plástico vermelho, olhando, numa cota inferior, a arena retangular com solo de terra batida, pergunto-me se o kalaripayattu é só um mero exercício físico, desporto ou espetáculo de artes marciais. Não será também a personificação dum heroico legado, mítico e histórico, que os queralenses construíram geração atrás de geração?
Talvez as duas hipóteses, mais de uma, ou menos da outra, dependendo da perspectiva do observador e do conhecimento que tenha de como esta arte nasceu, se estruturou e se transmitiu até ao presente.
Uma história com h grande
Etimologicamente falando, kalaripayattu é a união de duas palavras da língua malaiala: kalari que significa "lugar”, ou “campo de batalha", e payattu que significa "uso de armas".
O kalaripayattu surgiu, historicamente, no século XII, no sul do subcontinente indiano, num tempo em que a sociedade era dominada pela guerra; quando os diferentes reis, que repartiam o território, lutavam, entre si, numa busca contínua para se imporem sobre os demais.
Nesse tempo, a maioria das aldeias do Malabar tinha seu próprio kalari, onde os jovens das famílias, cujo dever era o serviço militar, iam treinar praticando o payattu. O treino castrense era necessário e todas as castas o executavam.
As dinastias Chola, Chera e Pandia assistiram à formulação dos códigos de combate próprios ao kalaripayattu. O sistema foi projetado para produzir um guerreiro eficiente, para o qual, as armas que usava eram apenas a extensão do seu corpo.
Mais tarde, os exercícios do treino militar e a execução da guerra passaram para os brâmanes e os xátrias, castas superiores, que tinham como parceiros os muçulmanos e os cristãos indianos que também prestavam serviços militares aos monarcas.
Mantendo o sistema de castas hierárquico ordenado, gradualmente, dentro duma evolução possível, os naires passaram a ocupar as funções guerreiras.
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Retrato de um casal da casta guerreira dos naires, da Costa do Malabar, ilustração portuguesa do século XVI, autor anónimo. Biblioteca Casanatense, Roma. |
O kalaripayattu, no auge de sua influência, entre o século XV e o século XVII, fazia parte integrante da educação da juventude naire que começava a treinar logo aos sete anos de idade. Os naires tornaram-se conhecidos pelas suas práticas marciais físicas e pelo seu comportamento heroico, capacidade de sacrifício e espírito indomável.
Tão importante se tornou o kalarippayattu, no território do atual Querala, que as suas especificas técnicas de luta, não só eram usadas nos combates reais das guerras interestaduais, mas também eram exibidas em festividades públicas, sob a forma de manifestações culturais, como combates simulados para demonstração de aptidões marciais, ou em danças-dramas, onde o valor heroico do guerreiro era virtualmente demonstrado sempre que o herói vencia as forças do mal.
Quando erodida a necessidade da eficiência do corpo humano, no uso de espadas, adagas, escudos e longas lanças de madeira, o kalaripayattu perdeu a razão que lhe criara a existência.
Tudo começou, no final do século XV, quando chegou, ao Malabar, a armada de Vasco da Gama que, com ela, trazia armas de fogo; e, sucessivas armadas portuguesas reforçaram a presença da artilharia em solo indiano.
Após os portugueses, chegaram holandeses e ingleses. Acima dos poderes locais, passaram a estar os poderes coloniais e a artilharia destes impôs militarmente o seu domínio sobre os estados indianos.
O discurso ideológico colonial britânico esforçou-se por impor a imagem do indígena, o homem indiano, como carente das virtudes masculinas vitorianas, subalternizando-o deliberadamente.
Os britânicos baniram o ensino de kalaripayattu e quase levaram à sua extinção, o que só não aconteceu, porque resistiu sob a forma de literatura impressa.
O renascimento bem sucedido do kalarippayattu ocorreu, só a partir da década de 1920, muito como uma reação, assente no desporto e na cultura física, contra o domínio colonial britânico e à imagem que acoplara ao indiano.
O kalaripayattu foi celebrado, no discurso nacionalista e anticolonial, como o exemplo tradicional do valoroso espírito marcial do Querala, pelo que, em torno das antigas práticas de combate militar, se foi reconstruindo a idealização e a recuperação da antiga virilidade malaiala.
O kalaripayattu, trazido do passado, tornou-se símbolo de uma identidade comum, crucial para legitimar e dar coerência cultural ao estado de língua malaiala do Querala (formalmente reconhecido em 1956).
Assim, o kalaripayattu é uma heroica herança mítico-histórica que está inextricavelmente ligado ao Querala, sendo, aceite como: uma antiga arte marcial enraizada na cultura do sul da Índia; uma disciplina psicofisiológica tradicional, voltada para a autorrealização; uma técnica de autodefesa e combate eficazes; uma forma de treino para outras formas de desportos e danças (como, por exemplo, o celebre Kathakali).
Eis a breve história do valor cultural e identitário duma secular arte de guerra, do Sul da Índia, e do empenho dos guardiões que a fizeram sobreviver.
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Oferenda às deidades protetoras do kalari |
Rapazes feitos de flexibilidade, concentração, controle e rapidez de reflexos
A contadora de histórias, que convosco está, declara que só descobriu, após o acaso de um fim de dia, esta arte de seu nome kalaripayattu, que a levou ao Periyar Cultural Centro, a um espetáculo que ela julga ter estado entre o revivalismo castrense e o malabarismo circense.
Não imaginando a explanação de um aficionado, sobre o estado da arte daquele espetáculo, a ocasional espectadora, que ela é, assim o descreve:
Iniciou-se com um ritual de oferenda às deidades protetoras do kalari. Um praticante entrou, na arena, tocou com a mão, o solo e a testa, e dirigiu-se a uma espécie de altar. Acendeu, uma a uma, as luminárias dispostas sobre os sete degraus que davam forma à estrutura.
Um segundo praticante veio iluminar as lamparinas distribuídas, junto das demais divindades e da coleção de armas primitivas, que iram ser utilizadas, longas lanças de madeira, adagas, espadas e escudos.
Sequentemente inicia-se o primeiro de vários quadros, em que dois oponentes lutaram, entre si, com armas que retiraram da coleção exposta contra a parede este.
Em cada quadro, os lutadores, na arena, usavam pés, pernas, costas, mãos, braços, cabeça e olhos, numa coreografia de movimentos corporais contínuos que impunha um fluxo de energia total.
Os seus movimentos eram composições de flexibilidade, resistência, rapidez de reflexos e controle, que se traduziam em posturas, passos, saltos e pontapés de defesa e de ataque.
As armas, que esgrimiam, pareciam ser apenas uma extensão dos seus corpos e estes instrumentos de respostas reflexas imediatas, na sequência de grande concentração visual e mental.
A páginas tantas, os quadros passaram a demonstrações com um só indivíduo.
Um atleta com o joelho esticado e os dedos dos pés estendidos, desfere uma sequência de pontapés que alcançam uma bola pendurada acima da sua cabeça, ao nível do seu braço estendido. Façanha que creio não desmerece da impressionante capacidade de impulsão do internacional português CR7.
Outro atleta trouxe, com ele, longa fita que lançou em todas as direções, criando desenhos, no espaço; um outro praticante realizou malabarismos de fogo, sem dúvida um momento de grande impacto visual, a não ser potencialmente desprezado, para um filme de Bollywood.
Houve um quadro, em que espectadores foram convidados a baixarem à arena, ficaram acocorados, em fila indiana, sobre as pernas e as mãos e um atleta realizou um salto, sobre eles, a partir de curta distância. E a fila de acocorados foi aumentando o comprimento e o atleta não falha o salto. Este foi, para mim, o momento interativo circense, de que não havia necessidade. Porém reconheço, que entre os visitantes, teve muito sucesso.
Todos os atletas individuais, igualmente, realizaram o seu número, demonstrando grande concentração, coordenação, leveza, agilidade, plasticidade e flexibilidade.
Na sequência das exibições individuais, pergunto-me, para que tipo de guerra, aqueles concretos exercícios poderiam ter servido? Logo se insinua a suspeita que os atuais praticantes de Kalaripayattu, confrontados com os modernos imperativos consumistas, associados ao turismo de massas e a uma certa mercantilização de artes marciais, terão um grande desafio, pela frente, ou mantêm o "método tradicional", ou seguem novas abordagens desviantes da autenticidade da disciplina.
Aos gurus e aos discípulos, nos seus centros de treinamento, cabe definir os futuros caminhos deste legado, mítico e histórico, de identidade do sul da Índia, que está, ele também, sujeito aos modernos ventos da globalização.