*As Jans de tempos remotos*
Em tempos remotos, falar-se de linhos fiados pelas Jans era uma referência nacional. Por então, de uma forma plausível, o maravilhoso inscrevia-se no sobrenatural e seres mágicos assentiam a participar em ações do quotidiano dos seres humanos.
Jans eram seres míticos femininos que, sob a forma de pontinhos de luz, tinham a capacidade de fiar um linho muito fino e sem nós. Estes espíritos fiandeiros eram, de norte a sul de Portugal, apontados como os obreiros das peças de linho da melhor qualidade.
*Meadas de linho com bolo*
Mas como explicar, hoje, que uma tradição oral que já poucos evocavam, no final do século XIX, se mantenha viva na memória dos habitantes de Amieira do Tejo e ocupe um lugar central no seu património imaterial?
Por aqui, ninguém esqueceu que, antigamente, para se ter uma peça de linho tecida pelas Jans, era preciso deixar, à noitinha, as meadas a tratar junto a um bolo de farinha de trigo cozendo na lareira.
A horas mortas as Jans apareciam, descendo pela chaminé e fiavam, coravam, urdiam e teciam o linho, desaparecendo em seguida, depois de terem comido o bolo ofertado. Porém se, quem pedia ajuda, se esquecesse de colocar o bolo, ao pé do linho, este aparecia queimado pela manhã.
Em Amieira do Tejo, no topo da colina do Calvário, com uma implantação privilegiada sobre a vila histórica, está a única homenagem evocativa àquelas mágicas tecedeiras que se cruzou no meu caminho. São sete figuras abstratas, de Carlos Henrich, em pedra granítica talhada, alçadas à condição de memória física de uma antiga lenda tradicional portuguesa que, só aqui, é recordada.
*Um sapato gigante para sete Jans*
Junto às esculturas que protagonizam as Jans, como complemento, um gigantesco pé em pedra vem evocar o fabuloso encontro de um sapateiro com aquelas.
Diz-se que o homem, querendo ver as Jans, escondeu-se e esperou que viessem tratar o linho. Como previsível a horas mortas, aquelas apareceram na chaminé e, ou o sapateiro se denunciou, ou elas o detectaram. Uma interpelou-o e, estendendo um dos seus pés, perguntou-lhe se ele sapateiro tinha alguma forma para ele. O sapateiro respondeu-lhe afirmativamente e preparou-se, de boa vontade, para lhe tomar medidas e fazer-lhe uns sapatos.
Foi, então, que o pé da Jam começou a crescer, a crescer sem parar, atingindo tal tamanho, que o sapateiro tomado de espanto e susto lançou-se a fugir, ouvindo, até muito longe, a Jam a repreende-lo rispidamente pelo seu atrevimento e curiosidade.
*Arte e identidade cultural local*
O conjunto escultórico foi inaugurado, em 2003, pela Câmara Municipal de Nisa. Estando quase há duas décadas implantado no local, podemos, questionar-nos se a população de Amieira do Tejo reconhece neste artefato artístico a representação da sua identidade cultural, ou se a homenagem, foi aceite, por ela, como expressão da memória coletiva.
Diria que sim, parece-me que a população assimilou a obra do artista como sua. Vejam-se os arbustos, as flores e as arvores frutíferas, que ajardinam a área de implantação das esculturas, que mais não são que o prolongamento espontâneo dos quintais privados na proximidade.
Se o arranjo paisagístico, junto às Jans de pedra, é resultante do livre arbitro de um local, é porém conseguido, cativante e útil, como demonstravam os frutos azuis arroxeados, de um abrunheiro plantado em linha com as Jans, à espera de serem colhidos e degustados em breve.
Confirma-se que em Amieira do Tejo, estamos ainda hoje em terra de Jans.