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Sinagoga Paradesi, lugar de memória dos Judeus Brancos de Cochim


Depois de uma ligeira curva, na direção leste-oeste, entrámos num beco sem saída. A única dica de que estamos, na proximidade da sinagoga,  é a torre relógio que, na nossa frente, fecha o caminho. O complexo da Sinagoga Paradesi escondido, atrás de altos muros, mal se adivinha, não fossem dois degraus semicirculares em face de uma porta de humildes folhas de madeira. 

Sobre a porta, o segundo piso, recuado ligeiramente do nível inferior, exibe quatro janelas com portadas venezianas de madeira pintada. 

Com o bilhete de acesso na mão, tirando os sapatos para aceder ao interior, pergunto-me se o espaço está definitivamente dessacralizado;  ou se, de quando, em quando, aqui se reúnem os imprescindíveis dez adultos, homens judeus, para a oração pública; ou se a sinagoga apenas funciona como um edifício de memória histórica e de turismo religioso e cultural.  

  


Salgueiros em azul e branco 

Logo que entro, no santuário, o maior e mais importante espaço do complexo, descubro que, não é responsabilidade exclusiva de tradição local, a razão de caminhar sobre a planta dos pés, mas do fato de que uma das características notáveis, deste edifício, é um intacto piso de azulejos cerâmicos azuis e brancos, do século XVIII, pintados à mão, em Cantão, que reproduzem quatro padrões com salgueiros oscilando ao vento.  


O padrão da primeira linha é idêntico ao da quinta fila, o segundo ao da sexta e, assim, por diante. 

 

Na primeira linha, cada azulejo apresenta um lótus e uma cerejeira, símbolos do verão e do inverno e conjuntamente do casamento, porque um representa a mulher e o outro, o marido. A peônia simboliza o amor e é considerada um bom presságio. 


A fileira acima mostra um crisântemo junto com um salgueiro e rochas. Crisântemo e salgueiro simbolizam o outono e a primavera e, novamente, o casamento. As rochas personificam fidelidade e longa vida.  


Na terceira fila, encontramos uma peônia e uma pedra. É um sinal de boa sorte para sempre.  


Finalmente, há uma série de cenas rurais, com mais um padrão de salgueiro.  


Se considerarmos que uma sinagoga é o lugar onde os casamentos são celebrados, terá havido alguma intenção simbólica na seleção dos desenhos dos azulejos? 


O chão azulejar foi integrado na sinagoga, em 1762, pelo riquíssimo Ezehiel Rahabi, comerciante judeu. Homem associado à Companhia Holandesa das Índias Orientais, por quase 50 anos, negociante de cardamomo, pimenta, açúcar, sândalo e outras commodities

 

Uma lenda urbana conta que os azulejos foram comprados, pelo próprio rajá, para nobilitar o seu palácio. Porém quando, alguém lhe soprou aos ouvidos, talvez o próprio Ezehiel Rahabi, ou alguém do seu círculo, que  tinha sido usado sangue de vaca, no fabrico daqueles, o rajá como um bom e devoto hindu, logo, os recusou por estarem profanados. Para não ficar no prejuízo total, vendeu-os por um bom preço, entenda-se um preço reduzido, aos judeus, seus vizinhos, que não tinham o mesmo requisito religioso. 


Lendas urbanas à parte, o fato é que os azulejos de faiança, azul e branca, que me parecem um revestimento mais adequado para paredes, foram colocados, no chão da sinagoga, e continuamente pisados a pé descalço, aqui continuam. 


 

Reflexo de Deus, ou reflexo mundano

As paredes, pintadas de branco, fornecem um ambiente neutro para a profusão de decorações adicionais, tais como as lanternas, os candeeiros e os lustres de vidros coloridos, que formam uma espécie de cobertura de transparências e reflexos de luz que, a diferentes alturas, paira sobre as nossas cabeças. 

 

A claridade que entra, pelas grandes janelas abertas, acentua  a transparência e a cintilação dos vidros e impele-nos a olhar para cima, como se a luz divina se materializasse simbolicamente ali.

 

Como veriam, à luz do dia, à luz do óleo de coco e, mais tarde, à luz elétrica, esta cintilação, as mulheres judias, na galeria aberta, seu espaço exclusivo,  sobre  a sala de oração? Reflexo de Deus, ou reflexo mundano?


Construído, no centro da sala, está um púlpito assente em estrado de madeira com uma balaustrada de latão reluzente.  


A arca de teca talvez ainda abrigue os quatro rolos da Torá (os primeiros cinco livros do Antigo Testamento), possivelmente envoltos em prata e ouro. 

 

A sinagoga também exibe as placas de cobre dos privilégios concedidos a Joseph Rabban, que remontam ao século X, escritas em Tamil, pelo governante da Costa do Malabar. As placas mostram o status e a importância da colónia judaica de Cranganore, que de lá as trouxe quando migrou para Cochim.  



Outras interrogações

As grandes janelas, em face umas das outras, abertas de par em par,  fazem correr uma aragem, por toda a sala, que afasta o calor sufocante e reconforta quem permanece no santuário. 


Teriam elas levado, até aos devotos hinduístas do templo Maha Vishnu, as palavras de despedida ditas, pelo último marajá reinante de Cochim, ao  seus súditos judeus, na sinagoga, antes de renunciar ao trono (1949); ou teriam permitido que os cânticos em sânscrito, do templo hindu, se infiltrassem nas orações hebraicas da sinagoga e vice-versa? 


Legítimas questões já que os dois edifícios religiosos têm um muro comum a uni-los.  

 

 

A extinção de uma comunidade 

Durante séculos, a judiaria de Cochim em Mattancherry, com as suas três sinagogas, lojas, habitações e escolas foi um vibrante centro populacional.


Atrevo-me a pensar, com absoluta certeza, sem vasculhar a informação histórica, que muitos dos seus habitantes tiveram apelidos como Pereira, Oliveira e Castro, ou outros semelhantes e bem portugueses.


Hoje, a cidade dos judeus, que a tabuleta Jew Town Road recorda, é só uma miragem dos livros de história como uma consulta aos censos demográficos demonstraria. 


A consulta foi desnecessária, porque na parede de um edifício, fronteiro à sinagoga, uma folha de fotocópia, com um retrato feminino em idade avançada, informava da morte de Sarah Cohen, de 96 anos, a última judia de Cochim. 

 

Com o falecimento desta senhora extinguiu-se, no multiculturalismo desta cidade, a vertente judaica. 


O fim desse capítulo, mais que milenar, começou em 1948, logo que o principado de Cochim se tornou parte integrante do estado do Kerala (1947) e os judeus  de Cochim iniciaram um movimento de emigração para novas diásporas e para o novíssimo estado de Israel.

 

A comunidade judaica foi gradualmente diminuindo na sua expressão numérica, até que num Shabat de julho de 1987, pela primeira vez, desde que a sinagoga fora construída, havia quatrocentos e dezanove anos, não houve, na lendária Sinagoga Paradesi, para a minian, o indispensável quórum dez homens judeus. 


Por então, já a Sinagoga de Kadavumbagam, várias centenas de metros mais ao sul, funcionava como armazém.

  

Em 2019, trinta e dois anos depois, do mau presságio anunciado com a primeira impossibilidade de realizar o minian, a comunidade judaica de Cochim perdeu a última representante

  

Foi uma extinção, para a qual colaboraram os próprios judeus, não  um extermínio programado, como em muitos outros lugares e ocasiões ocorreu. 

 

Fica-me o desejo que  a memória  do passado e da tradição judaica de Cochim persistirá, talvez, ainda muitos anos, pelo menos, tantos quantos este edifício permanecer na cidade.


A memória de um passado de séculos, durante os quais os judeus de Cochim viveram, negociaram, trabalharam, oraram, foram educados, socializaram e celebraram as suas festas religiosas e os seus ciclos de vida, em Mattancherry,  sem nunca viverem num ghetto fechado, coabitando, lado a lado, com vizinhos que eram muçulmanos, hindus e cristãos. 


Todos  a interagirem, entre si, todos se assistindo mutuamente, como aconteceu até aos últimos dias, da velhice de Sara Cohen, apoiados, que foram, por um vizinho muçulmano.   

 

 Selo comemorativo do 400º aniversário, da Sinagoga Paradesi, 1968



ROTA ÍNDIA DO SUL - EM BUSCA DE CRISTÃOS E ESPECIARIA


 

 

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