*Uma escultura de vulto quinhentista*
Em exposição, no MIAA (Museu Ibérico de Arte e Arqueologia) de Abrantes está uma imagem gótica, em pedra calcária de boa qualidade, produzida provavelmente na última metade do século XV, é uma representação da Virgem Maria de manto na cabeça, coroada e amamentado o filho, Jesus.
A decoração que ainda subsiste na imagem é reduzida, mas é possível observar vestígios de cor preta, no calçado pontiagudo e algum azul no manto. Quer na pele, quer nos panejamentos, as cores seriam luminosas e contrastantes, para captarem a atenção do observador.
Se a utilização de cores é característica do período gótico, igualmente o uso da pedra também caracteriza a época de produção. A pedra, até à última metade do século XV, foi preferida para a produção de esculturas e ornamentos escultóricos, por ser uma matéria nobre de grande durabilidade.
O dinamismo da obra é proporcionado pela torção do corpo em “S” e pela comunicação implícita ao olhar entre Mãe e Filho, mesmo que as proporções entre as diferentes partes do corpo não sejam muito equilibradas.
É especialmente o tratamento do rosto e a expressividade nele obtida que define a qualidade técnica do escultor, ou da oficina, responsável pela execução.
*O simbolismo do seio*
O seio da Senhora, exposto por uma abertura nas vestes, nu, cónico e subido em relação ao seu formato e posição naturais, está assumidamente a cumprir a sua função de alimentar o Menino, que não se furta a saciar a fome.
Aquele seio elevado simboliza a fonte primeira da nutrição do ser humano, a sustentabilidade da vida humana associada ao seu primeiro prazer. Concomitantemente é o símbolo da graça e sustento que o o amor que Deus oferece aos cristãos porque o que o leite faz para o corpo, a palavra de Deus faz para o espírito.
*A antiga devoção à deusa amamentadora*
Considerando as remotas reproduções da deusa mãe egípcia Ísis, oferecendo o seio esquerdo ao filho Hórus sentado no seu colo (na variante de Ísis Lactans/a deusa amamentadora) o tema da divina alimentação materna tem uma origem muito anterior ao cristianismo.
Se a devoção por Ísis remonta ao início da civilização egípcia, os cultos isíacos expandiram-se, pelo Mediterrâneo, partindo do mundo helénico para o Império Romano. Por intermédio deste último, chegaram também à Península Ibérica, como é comprovado em numerosos testemunhos arqueológicos.
Após a proibição, pelo imperador Teodósio, de todos os cultos pagãos greco-romanos (ano de 380) os cultos isíacos sofreram retrocesso, até que, com Justiniano, foram completamente extintos, quando este eliminou, na Ilha de Filas, em 550, o resistente e derradeiro reduto daqueles mistérios egípcios.
*A Virgem de Leite cristã*
Foi da iconografia de Ísis amamentando que o cristianismo recriou a Virgem do Leite. A Nossa Senhora do Leite é um dos ícones mais antigos da religião cristã.
Considera-se que a imagem, mais recuada conhecida de Maria, é uma pintura mural do século II, na Catacumba de Priscila (Roma). Naquela, a Senhora é retratada precisamente a amamentar o Menino Jesus, oferecendo-lhe o seio esquerdo.
A iconografia com a temática do aleitamento será produzida, mesmo profusamente, ainda nos séculos XIV e XV e parte do XVI, para após o Concilio de Trento (1563), ser censurada ativamente, porque então a nudez é desencorajada e condenada nos temas religiosos. O combate à lascívia, à sensualidade e ao apelo carnal constituiu a vertente mais notória da intervenção da igreja tridentina. O corpo nu ou partes sexuadas nuas tornaram-se a carne do pecado, a mácula da tentação, o pasto do demónio, em suma a falha a precisar de correção. Na segunda metade do século XVI, ao nível da arte, após vários séculos de explosão, exuberância e prazer das imagens, abriu-se um período de cerco e guerra àquelas, uma das consequências foi a condenação ao desaparecimento das Virgens de Leite, devido à exposição do seio nu, em oferenda, ato entendido como premonitório de luxúria infantil e adulta, consequentemente pecado a erradicar.