O Paço de Ourém, uma das mais inovadoras obras de arquitetura militar portuguesa do século XV (Vila Velha de Ourém, Ourém, Santarém)
O Paço de Ourém, pelo perfil e pela originalidade da sua estrutura, quando comparado com outras estruturas militares do seu período, em território português, distingue-se das demais quer pela tecnologia usada, quer pela representação de uma forte retórica de poder, traço que só se pode explicar através da personalidade do seu encomendador.
Um encomendador de estatuto principesco e grande viajante
O Paço de Ourém foi patrocinado por D. Afonso de Portugal (c. 1402/3-1460) 4º conde de Ourém (desde 1422) e marquês de Valença (desde 1451).
O Conde foi pessoa viajada, talvez um dos mais viajados portugueses do seu tempo. Conheceu boa parte da Europa, o Próximo Oriente e praças portuguesas no norte de África.
Se atendermos que estadeou em Londres e em várias cidades da Flandres e Borgonha, dos reinos ibéricos, de Itália (Pisa, Florença, Bolonha, Milão, Siena, Roma, Veneza), do norte da Europa (Basileia, Estrasburgo, Bona, Colónia) que esteve em Jerusalém (tendo passado pelo Cairo e por Damasco), concluímos que conheceu as mais importantes cidades e os mais influentes círculos culturais do seu tempo.
Apesar de muito viajado e malgrado a sua excentricidade em recusar ser armado cavaleiro, não se tratava propriamente de um típico senhor do Renascimento, uma vez que as suas preferências artísticas, como aliás as de muitos homens cultos portugueses de finais de quatrocentos, se orientavam em direções diferentes e segundo parâmetros de gosto conjunturais que hoje dificilmente se julga serem compatíveis na mesma personalidade.
O seu gosto parece assim ter oscilado, entre aquilo que absorveu, mas viagens que efetuou e o ambiente artístico português do gótico final, ambiente que dispunha de uma mão de obra qualificada e nada despiciente, circunstância que permitirá durante muito tempo a coabitação de diversos modos e gostos (e até a fusão de hábitos mentais, quer italianizantes, quer “europeus”, quer espanhóis, quer “mouriscos” ou mudéjares, quer ainda estritamente portugueses).
Como frisou Paulo Pereira, o gosto do Conde D. Afonso integra-se no peculiar ecletismo dos homens do Quatrocentos português, daí ter custeado obras de caráter “experimental” ao modo toscano, como esta, ou obras de perfil flamejante, o caso concreto do estupendo sacrário que doou à Colegiada de Ourém (hoje, no Museu Nacional de Arte Antiga).
Autonomia e poder como Ninguém
Numa atitude pertinente com o estatuto de alta nobreza de que desfrutava, D. Afonso adotou como emblema (veja-se a sua arca tumular, na Colegiada de Ourém) dois guindastes afrontados que levantam um listel ou bandeirola com o moto “NEIS”, a abreviatura de Neminis, Ninguém.
Simbólica representação do modo como, o filho primogénito do casamento entre D. Afonso (bastardo legitimado do rei D. João I, Conde de Barcelos e 1.º Duque de Bragança) com D.ª Beatriz Pereira (filha e única herdeira do Condestável D. Nuno Álvares Pereira) o influente cortesão das cortes de D. Duarte e de D. Afonso V (respectivamente tio e primo) a si mesmo se via, ou seja acima dos demais.
O avô materno doou-lhe, o condado de Ourém e Porto de Mós que foi, quer do ponto de vista económico, quer simbólico, o núcleo senhorial da formação e sustentação do seu poder.
Recebeu ainda do avô materno todos os bens e benefícios que este detinha na zona da Estremadura (incluindo todos os reguengos do termo de Lisboa -Camarate, Charneca de Sacavém, Casal, Unhos, Catujal, Frielas) a judiaria de Lisboa (com todas as suas rendas) a ribeira do sal, o reguengo de Colares, o barco de Sacavém, bem como os Paços de Lisboa.
D. Afonso esperava herdar, no futuro, após a morte do pai, todos os bens pertencentes ao ducado de Bragança, o terceiro constituído no país, logo a seguir aos de Coimbra e Viseu, dos Infantes de Avis, D. Pedro e D. Henrique.
A obra de pedra e cal, correspondente ao Paço de Ourém, pela imponência, inovação e grandeza destacava o seu patrocinador entre a alta nobreza do reino, era um meio de promoção do seu poder sobre o condado e anunciava o grau de autonomia de que dispunha.
Para além desses objetivos, o 4.° Conde de Ourém pretendeu certamente edificar, aqui, um paço moderno, ao estilo do que vira em Itália, uma arquitetura nova no espaço português, com a aplicação de tipologias militares relativamente avançadas.
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Um paço fortificado digno do herdeiro da Casa de Bragança
O Paço, construído entre 1450 e 1460, recebeu particularidades da arquitetura militar vanguardistas da região do norte e centro oriental italiana, com a sua estrutura compacta e os seus sistemas de defesa ativa modernos.
Aproxima-se de tal modo do modelo da rocca quatrocentista (com paralelos então na Rocca Sismonda dos Malatesta) que pode ser considerado entre os monumentos mais interessantes que no género existem fora de Itália, segundo Rafael Moreira.
De sul, para norte, o paço corresponde a três zonas interligadas entre si:
A- Implantados sobre a antiga cerca da vila, foram erguidos dois grandes torreões de planta poligonal, com jorramentos (os bojos salientes na base) que funcionavam como baluartes avançados - sendo um ligeiramente mais adiantado que o outro.
Estão encimados, em todas as faces, ao nível dum recuado e último piso, por um adarve (semelhante a um terraço avançado) alicerçado numa arcaria de tijolos assente em grandes mísulas de pedra de estribo longo.
O pano de muralha que une os torreões entre si, rematado por caminho de ronda, é rasgado por uma porta em arco quebrado, no exterior, e abatido no interior. É a Porta da Traição, cuja funcionalidade seria assegurar uma saída segura do paço para fora da vila, sem necessidade de por ela passar.
Estes dois torreões constituem uma inovação técnica importante no âmbito da arquitetura castrense, pelas seguintes razões:
1- O seu avançamento desencontrado permitia uma melhor cobertura dos panos da muralha não deixando ângulos mortos que carecessem de cobertura defensiva;
2-Do mesmo modo a secção prismática e o seu volume facetado e maciço oferecia à partida maior resistência ao tiro de bombarda;
3- Por último, o jorramento (ou espessamento da base exterior das torres) criava a distância que dificultava qualquer intrusão, impedindo a minagem das fundações e o uso do ariete.
Estas três inovações castrenses foram lentamente introduzidas em «obras de ponta” até chegarem como corrente principal à arquitetura militar manuelina.
B- Por detrás dos torreões, formando com eles um pátio interior, situa-se a zona paçã propriamente dita, que corresponde a uma única, longa e alta torre disposta no sentido da largura.
O acesso, ao interior do paço, faz-se pela sua fachada norte, a que se chega por corredor inferior, com abóbada de berço.
Curiosamente, o vão do corredor ao corta o jorramento interrompendo-o, assim este elemento terá, aqui, mais função de cenário que a apropriada funcionalidade militar que define a sua presença nas torres antecedentes.
O topo deste edifício, à semelhança dos torreões, apresenta o último piso igualmente recuado, com um adarve, a varanda corrido a toda a volta.
O adarve é sustentado por uma arcaria de tijolo, só interrompida no plano onde se rasgam as janelas para dar lugar a um friso decorativo de modulação flamejante com apontamentos mudéjares, semelhante ao que remata a grande torre manuelina em Sintra
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Interrupção do adarve de tijolo por janela seguida de friso decorativo de modulação flamejante com apontamentos mudéjares |
Em contaste com a fenestração da fachada sul, a fachada norte, orientada ao castelo medieval, exibe grandes aberturas em arco quebrado.
O interior, recuperado recentemente com projeto do arquiteto João Mendes Ribeiro, sobre a cobertura recolocada, que libertou este espaço de ser uma ruína a céu aberto, contém agora a receção e o acolhimento do visitante e espaços expositivos.
Descansamos sentados nas conversadeiras junto aos vãos das janelas, gozando as pedras seculares, agora, limpas, recuperadas, sem líquenes e argamassas em desagregação. Em suma, um luxo.
Enquanto deambulamos pela área expositiva, identificamos, pelas magníficas mísulas, de desmurado tamanho, e pelo negativo do encaixe das tábuas do ripado de sustentação, o nível dos sobrados que estabeleciam os pisos originais do paço.
Seriam cinco, o que nos leva a pensar como faria contraste a morada do Senhor da Vila, das habitações dos seus conterrâneos, de que as mais alterosas chegariam a dois pisos. O esplendor, como a vida, dos possuintes poderosos contrasta sempre com a dos humildes mortais seus contemporâneos.
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A associar a este espaço, ainda, o curioso corredor de comunicação direta entre a torre baluarte localizada a Nascente e o castelo medieval, que atravessava o paço sem comunicar com ele. Comunicação que o projeto arquitetónico de valorização do monumento completou, com um passadiço aéreo, em aço corten, que vai do paço ao torreão nascente.
Acede-se a esse corredor subterrâneo, por área que foi designada pelo guia do monumento, como a "Chave", em verdade, corresponde a uma estrutura preexistente, ou seja à base que sobreviveu de uma antiga torre cilíndrica.
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C- Na parte posterior do paço, a uma cota mais elevada, o antigo castelo medieval é um recinto triangular, delimitado por três panos de muralha que unem três torres. Estas ocupam os vértices do triângulo e apresentam plantas quadrangular e retangular e dimensões diferentes.
O acesso, ao recinto interior do castelo medieval, é feito por um vão de arco de volta perfeita, localizado na face sul da torre sul, acessível por escadaria. Existe um outro vão de acesso, ao interior do castelo, em arco quebrado, no pano oeste da muralha.
No pátio central encontra-se uma cisterna à qual se desce por estreita escada de pedra. A recente intervenção de restauro e valorização demarcou, com lajes de pedra branca, a parte superior da cisterna visível à superfície do terreno.
A torre noroeste, de planta retangular, tem o topo coroado por mísulas em tijolo, nas faces, e mísulas em pedra, nos cantos. Na face oeste destaca-se um vão em arco segmentado.
Aqui ressalva mais uma porta de verga denticulada. Pergunta: "-Será esta da mesma época das portas denticuladas dos torreões, ou serão estas que a imitam?" Pouco provável a imitação pois os elegantes vãos, com lintéis denticulados do Paço, apontam para um horizonte italiano renacentista ou pré-renascentista e não gótico. Pelo que se posta numa valorização decorativa certamente feita, ao mesmo tempo, que a colocação das mísulas, na torre, e por arrasto com as características da estrutura nova. Nem o velho castelo medieval, terá sido, ignorado nos planos construtivos do 4.º conde de Ourém.
Certo é que estamos na torre que se diz de Dona Mécia. Dona Mécia Lopes de Haro, mulher de muita experiência política e militar, dama leonesa-biscainha consorte, ou concubina, de um rei português, sem sorte, ludibriado e deposto, em 1245, pelo Papa a favor de seu irmão.
Após ser raptada, ou participante ativa, no seu próprio rapto, na condição de prisioneira, ou de cúmplice, por algum tempo, para aqui veio, para o castelo e para a terra de Ourém, que o marido português lhe concedera a par de outros territórios e benefícios.