😋😋😋😋😋
*Uma receita de abade*
O celebérrimo Pudim Abade de Priscos, uma receita generalizada a todo o Portugal, teve origem em Braga, no Minho, em fins do século XIX.
Num tempo em que, nas cozinhas, se usavam fornos e fogões a lenha e que os produtos e condimentos, ao dispor, eram os que o território em redor propiciava, foi seu autor Manuel Joaquim Machado Rebelo, o Abade de Priscos. Este clérigo ficou, mais conhecido não por ter sido um empenhado pastor de almas católicas, na freguesia de Santiago de Priscos, em Braga, mas pela suas supremas e surpreendentes aptidões como cozinheiro.
Esta sobremesa, da sua autoria, é caracterizada por uma consistência delicada e inconfundível, entre melíflua e gelatinosa, que se desfaz na boca de uma forma peculiar. Para que a refeição termine prazerosamente e no seu máximo esplendor, deve comer-se, preferencialmente, devagar e em pequenas doses. Desconfie de que é uma imitação se lhe trouxerem, para a mesa, um grande quinhão.
Este pudim, com uma textura e sabor únicos, o rei dos pudins portugueses, no dizer do gastrónomo Vergílio Nogueira Gomes é uma sobremesa de confecção muito simples e de poucos ingredientes (ovos, açúcar, limão e a canela) a que acresce o elemento fundamental para a consistência cremosa que o caracteriza - nem mais nem menos, que o humilde e, hoje, muito desprezado, toucinho.
Donde é uma sobremesa, por restrições religiosas alimentares, completamente interdita a muçulmanos e a judeus e não aconselhada a vegetarianos, ou a vegans.
Já agora, para que não haja abusos e falsificações, que o adulterem, por razões como aquelas, ou de cariz comercial, esta doce iguaria portuguesa dispõe de uma Confraria cuja missão é preservar e promover a receita original do pudim.
No livro Biblioteca Culinária da Livraria Civilização, publicado em 1925, ela assim nos aparece descrita: O pudim é confeccionado num tacho de latão ou cobre onde é colocado meio litro de água. Quando esta estiver a ferver, coloca-se meio quilo de açúcar, uma casca de limão, um pau de canela e cinquenta gramas de toucinho (é proposto que seja gordo e de preferência de Chaves ou de Melgaço) e deixa-se ferver até atingir ponto espadana batem-se delicadamente quinze gemas até ficar a mistura homogénea e mistura-se-lhe um cálice de vinho do porto até ficar em meio ponto, depois de bater novamente.
A calda de açúcar é, então, vazada através de um coador fino para uma tigela onde estão as gemas, mexendo-se tudo. Barra-se uma forma com açúcar em caramelo e deita-se aí o preparado que é posto a cozer durante 30 minutos em banho-maria. O pudim é
desenformado quando estiver quase frio.
Infelizmente não existem outros registos escritos dos prodígios do abade, nas cozinhas. Podemos agradecer o conhecimento e a disponibilidade generalizada da receita, não só ao seu criador, mas também ao diretor do Magistério Primário Feminino de Braga, Pereira Júnior, que, em boa hora, pediu, ao Abade de Priscos, umas suas receitas escritas para serem ensinadas no Magistério às alunas. Comprova-se, pela invulgaridade do pedido, a boa fama do abade como cozinheiro.
*O homem, o abade e o cozinheiro*
Manuel Joaquim Machado Rebelo nasceu em Santa Maria de Turiz (Vila Verde) em 1834 e faleceu em 1930, tendo servido a paróquia de Priscos, durante 47 anos, onde exerceu o sacerdócio com dedicação e sensibilidade.
Era também um homem de aptidões várias que compreendiam a passagem da roupa, a costura, o bordado e a dinamização de um grupo de teatro amador (era ator e ensaiador, fazia os cenários e os figurinos para as peças levadas à cena).
O pároco era requisitado para organizar os repastos, fossem eles de casamentos, jantares de gala, cerimónias privadas, ou de estado. Há referências a vários manjares, por ele confeccionados, como “almôndegas de várias sortes de caça”, “enguias de fricassé”, “empadinhas de coelho". As refeições, sob a sua batuta, eram rematadas com um um epílogo triunfal de pudins.
De entre os vários episódios representativos da fama do abade e das suas produções culinárias, está um ocorrido com o D. Luís, quando de uma visita do monarca ao Norte do país. Impressionado, com a qualidade dos pratos que degustara, o monarca quis conhecer e felicitar o cozinheiro e saber de que eram feitas certas iguarias.
Ora, um dos ingredientes dos servidos a El-Rei, segundo o abade, não era mais nem menos que palha. Espantado com a resposta, o monarca inquiriu se considerava ser adequado servir palha ao rei, ao que o abade respondeu que tudo dependia da forma como ela era servida, evidenciando, deste modo, os seus afamados dotes culinários.
Daniel Salgado, no livro etnográfico Terra de Bastos (de 1933), retorna a uma outra utilização da palha, na culinária do padre, numa passagem que descreve um jantar que o abade preparou, para colegas de sacerdócio, no final de um período de Quaresma, na freguesia de Dume.
Na véspera do repasto, o pároco arregimentou dois homens, com robustez suficiente, para moerem alguns feixes de palha num majestoso almofariz de bronze. O resultado foi uma papa cremosa, um polme, que depois de, devidamente coado, entrou na preparação de recheios, molhos e purés.
Eis estórias do maior cozinheiro português, na transição do século XIX para o XIX, tão repetidas que algum fundamento têm de certeza.
Só temos a lamentar a ausência dum receituário escrito, destinado à posteridade, o que talvez tenha a ver com o mesmo princípio culinário que aplicava a este pudim “- O pudim é facílimo de fazer, mas difícil de acertar", como quem diz, ou se nasceu com mão para a cozinha, ou não se chega a um bom resultado, independentemente da precisão da receita.