Procissão de N.ª Sr.ª da Boa Viagem, a continuidade da memória e do espírito do lugar (Constância, Santarém)
*N.ª Sr.ª da Boa Viagem sai em procissão*
Em Constância, lugar de encontro do rio Zêzere com o Tejo, todos os anos, na segunda-feira a seguir ao Domingo de Páscoa, ocorre a procissão de Nossa Senhora da Boa Viagem.
A imagem da Virgem abandona o seu altar, na Igreja de São Julião Mártir, matriz de Constância, e, por ruas engalanadas com grinaldas de flores de papel, desce às respectivas zonas ribeirinhas, para abençoar os rios, os barcos e as pessoas. Apesar de hoje, barcos e pessoas serem escassos quando se trata de atividades produtivas e modos de vida fluviais.
Não vai sozinha Nossa Senhora, porque no seu cortejo processional, participam outros santos: uns que, com ela, descem da igreja, e, outros, em improvisados altares floridos à popa de barcos ornamentados com bandeiras e flores de papel.
Os barcos agruparam-se no Zêzere, fundeados na Praia Fluvial de Constância, em face do Parque Ribeirinho. Após receberem a primeira benção, em conjunto irão navegar para o Tejo e acompanhar o cortejo processional durante o seu trajeto ribeirinho na vila.
Nos tempos modernos, a Senhora da Boa Viagem e os seus acompanhantes e fiéis estão dispensados de descer a fundo cais, ou a incómodo areal. O cortejo só contempla os barcos, nunca se aproximando deles, o que não ocorria em tempos idos, quando as gotas de água benta eram aspergidas à distancia suficiente para posarem nos barcos.
O próprio ato da benção, na atualidade, passou a ocorrer em três paragens sucessivas; duas em miradores, uma sobre o Zêzere, junto ao painel do Neptúnio, e outro sobre o Tejo, em face do Parque do Porto da Cova; a terceira e última, introduzida nos anos sessenta do século XX, concretiza-se na praça principal da vila. É aí que ocorre a bênção mais consentânea com a realidade dos tempos modernos, a das viaturas, com a presença dos bombeiros e motards nas filas de destaque.
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Andor de Nossa Senhora da Boa Viagem |
No andor de N.ª Sr.ª da Boa Viagem, um barco varino, embarcação de transporte de carga, icónica no Tejo, em uso até até meados do século XX |
*Uma festa em nome da continuidade da memória e do espírito do lugar*
Desde os primórdios da nacionalidade há diversas menções sobre as atividades económicas que ocorriam, em Punhete (nome, em 1836, alterado para Constância). Essas atividades eram a pesca e, sobretudo mercê dum movimentado porto que foi, até desaparecer, nos meados do século XX, um dos principais do Médio Tejo, o transporte fluvial e o comércio.
A este lugar, entroncamento de caminhos fluviais e terrestres, afluíam palha, cortiça, azeite, vinho e fruta dos campos do Ribatejo e o Alentejo. Acresciam produtos, trazidos através do Zêzere, com origem, ou nos pinhais que circundam o rio, ou na Serra da Estrela. Indiferentemente da sua proveniência, todos eram embarcados, no porto da vila, com destino a Lisboa e aos seus mercados. No retorno, os barcos traziam o sal do litoral (imprescindível à manutenção de alimentos) e produtos manufaturados.
Não havendo outros meios de comunicação, os barcos transportavam também as notícias do país e do mundo, que subiam o Tejo, na boca dos embarcados.
A devoção das gentes de Punhete/Constância, em particular a dos marítimos da cabotagem, a N.ª Sr.ª da Boa Viagem, resultou do intenso tráfego fluvial que, durante séculos, aqui, interruptamente ocorreu.
Nas suas viagens de ida e retorno, a Lisboa, as tripulações confrontavam-se com um Tejo, que mesmo conhecendo bem, lhes oferecia, correntes, redemoinhos, baixios, bancos de areia, temporais, ou falta de vento. Foi da panóplia de perigos para a navegação, ofertados pelo Tejo, que nasceu o apego de gerações de marítimos a N.ª Sr.ª da Boa Viagem e a confiança na sua protetora intervenção.
Eram os próprios marítimos que promoviam as festas em honra de Nossa Senhora da Boa Viagem, a eles, naturalmente, os seus companheiros de outras fainas fluviais se associavam em devoção e agradecimento.
Há que reconhecer que a memória dessa proteção continua a fazer parte da identidade local. A realização desta festa de celebração da Senhora da Boa Viagem representa a constância do espírito do lugar, moldado por gentes que, no passado, construíram uma povoação na confluência de dois rios indómitos, com os quais tinham que lidar diariamente, na busca do seu sustento e sobrevivência, processo difícil para o qual se aceitavam e requeriam todo e apoio divino.
Em cada ano, era nomeado um festeiro que ficava responsável pela realização dos festejos do ano seguinte. A passagem do testemunho ocorria no dia seguinte ao da Festa, chamado Terça-feira de Praia, quando os marítimos se reuniam, com as suas famílias, no areal do Zêzere, para almoço de confraternização, no qual era efetuava a entrega da bandeira azul da Boa Viagem ao novo mordomo. Assim era encerrando o ciclo que seria reaberto na Páscoa seguinte.
Com a aurora dos tempos modernos (que trouxe o caminho-de-ferro, as estradas, as barragens, a produção industrial, o transporte de mercadorias em carris e sobre asfalto) os barcos de cabotagem, do Zêzere e do Tejo, sem préstimo, apodreceram varados nas praias; os portos e os marítimos, sem função, desapareceram. Até os pescadores rarearam, porque ficaram sem peixe, a construção das barragens, como a de Castelo de Bode, perturbou a desova dos barbos, bogas, trutas, enguias, sáveis e lampreias.
Se o antigo modelo económico da vila de Constância desapareceu e com ele os grandes e pequenos barcos de carga, bem como a relevante atividade nos portos, subsiste, porém, em nome da continuidade da memória e do espírito do lugar, a festa anual e local, em honra de Nossa Senhora da Boa Viagem.
A festa ficou, após interrupção, a ser organizada pelo município. Desde os anos setenta que nenhum executivo camarário a enjeitou, ou recusou-se a promover, a pagar e a concretizar, com o apoio voluntário da paróquia, das associações de Constância e dos constancienses.
*A imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem*
A imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem, que sai em procissão, foi adquirida pelos próprios marítimos, no século XVIII, através da Confraria de Nossa Senhora da Boa Viagem.
Teve altar próprio na igreja de S. João Baptista mas, quando aquela ruiu, a imagem foi transferida para a igreja matriz de S. Julião, situada no espaço onde atualmente se localiza a Praça.
Aí, contudo, não dispunha de altar, permaneceu como “hóspede” à espera de mais adequada e condigna situação. Além disso, a Igreja de S. Julião, era frequentemente assolada pelas cheias, estava degradada e muitos da terra gostariam de ver a matriz mudada para a nova Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, situada na parte mais alta da vila.
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Igreja Matriz de Constância, altar de Nossa Senhora da Boa Viagem (postal ilustrado) |
Também os responsáveis da Confraria e os marítimos em geral pensaram em construir um altar na Igreja dos Mártires para colocarem nela a imagem e aí lhe prestarem culto. O problema é que esse templo pertencia a outra confraria e estava sob a direta proteção da rainha. Por isso tiveram de pedir autorização a uma e à outra para executarem a obra.
Na sua Provisão, datada de I4 de agosto de 1788, a Rainha D. Maria I colocava duas condições: a primeira era que o altar ficasse do lado do Evangelho, ou seja, do lado esquerdo de quem entra na Igreja; a segunda era que se respeitasse os altares já existentes.
A condição da localização mantêm-se em vigor, tal como o acolhimento então prestado, já que podemos constatar que, ainda hoje, na igreja matriz, no primeiro altar do lado esquerdo de quem entra, está a imagem barroca de madeira policromada de Nossa Senhora da Boa Viagem, adquirida pelos marítimos da Punhete/Constância devido à grande devoção que lhe tinham como protetora das más aventuras nos rios.
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A imagem da Virgem abandona o seu altar, na igreja matriz de Constância, e, por ruas engalanadas com grinaldas de flores de papel, desce às zonas ribeirinhas do Zêzere e do Tejo |
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Não vai sozinha Nossa Senhora, no seu cortejo processional, participam outros santos, uns que descem com ela da igreja matriz ... |
... outros que vão em pequenos andores improvisados à popa dos barcos |
Benção no rio Zêzere |
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Benção na Praça Principal |
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O areal da praia fluvial do Zêzere, com reunião de barcos e população esperando a benção de N.ª Sr.ª da Boa Viagem |
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Grinaldas de flores de papel ornamentam os barcos |
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Barcos e gentes acostados, no Zêzere, esperando desfilar pelos rios |