Na península de Cochim, nos séculos XVI e XVII, ao tempo da Rota da Pimenta, a primeira cidade europeia, coexistiu em espaço próprio, com a urbe nativa, que os portugueses designavam por Cochim de Cima.
Na década de trinta, do século XVI, Duarte Barbosa descreve Cochim de Cima deste modo (…) e dentro está uma cidade grande, ao longo do rio habitada de mouros naturais e de gentios a saber chatins, guzarates e de índios naturais da terra.
Ambos os espaços estavam perfeitamente individualizados, e, na atualidade, contínua a correr uma estreita linha de água (Calvetty) que, por então, correspondia ao esteio que fazia a delimitação das terras de Cochim de Cima, das terras de Cochim de Baixo, ou Santa Cruz de Cochim, unidas por um só ponto de passagem terreste.
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O espaço nativo, corresponde ao atual, vibrante e popular bairro de Mattancherry, no qual uma multidão composta por mouros naturais, gentios e índios naturais da terra vai coabitando, com outras variadas gentes de diferenciadas línguas, identidades étnicas e religiosas, num movimento perpétuo que se distribuí, quer pelo dédalo das ruas, quer pelos estabelecimentos abertos em todas as portas.
À excepção dos turistas, todos vivem, por aqui, atarefados nos seus negócios: -o das velhas especiarias, guardadas em sacos de juta, caixas e gavetões de madeira, em lojas que já passaram por várias gerações; -o das antiguidades, testemunhos de tempos pretéritos, em exibição, em estabelecimentos que abarrotarem com os mais variados objetos de formas, materiais e tamanhos; -o das artes e artesanato do Malabar, traduzidos em objetos e esculturas de madeira, artefatos de fibras de coco, espelhos de metal, pinturas, etc.; o das mercadorias que, em cada dia que chega ao mundo, são de consumo certo: pão, vegetais, peixe, etc.; o dos negócios do turismo, de restaurantes a alojamentos, passando pelos transportes e outros serviços. Este último é segmento com opções de preços para quaisquer tipos de bolsas.
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Negócios das especiarias, antiguidades e artes e artesanato do Malabar |
Em Mattancherry, uma área de cerca 3 km2 de superfície, azafama, movimento e trânsito estão garantidos, bem como a concentração de subtis, ou de fortes aromas, sejam das especiarias e das cozinhas, ou o das frutas tropicais que amadurecem pelos quintais.
Podemos seguir o movimento das gentes, acompanhando a sua azafama, as suas compras, os seus trabalhos, ou, simplesmente, apreciar os looks étnicos locais: os homens, nos seus dhotis brancos, ou nos seus lungis coloridos, ambos enrolados à cintura como uma saia; nas mulheres, os diferentes estilos de uso dos policromáticos saris, ou, as suas túnicas, acima ou abaixo dos joelhos, sobre calças largas, leggings ou até jeans.
Apreciando os looks étnicos locais |
É agradável explorar o bairro de Mattancherry, sem pressa, calcorreando as ruas, onde cultura, tradição e história nos acompanham, a cada passo, desde que as queiramos ter por companhia.
A Bazar Road, na orla marítima do canal de Vembanad, estende-se entre os dois terminais de ferry que servem a península.
Apresenta uma formidável e uniforme frente de edifícios vernaculares, com um corpo principal retangular e duas alas de armazéns, formando um U aberto sobre o ancoradouro. Ao tempo em que Mattancherry era um grande mercado regional, todas as mercadorias eram descarregadas, dos barcos diretamente para os cais dos ancoradouros, para encherem os armazéns e as respetivas lojas abertas para a frente de rua.
Uma formidável e uniforme frente de edifícios vernaculares |
Estes edifícios são, em geral, compostos por dois pisos, o superior ritmado por janelas de vidrilhos e portadas exteriores; estão pintados de cores vivas e têm portas de madeira trabalhada. Os seus beirais, por vezes, duplos, são distribuídos em duas cotas distintas, funcionam como uma proteção ajustada à torrencial queda de água das monções, destacando-se pelo avanço sobre a rua.
Helder Cabrita defende que estes edifícios mercantis, com as paredes do corpo principal em laterite e, frequentemente, apresentando pilastras salientes de inspiração maneirista, têm afinidades com a arquitetura goesa dos séculos XVII e XVIII.
As lojas merecem alguma exploração, pelos produtos à venda, pelos símbolos de identidade religiosa que os lojistas ostentam, ou mesmo pelo mobiliário retro das próprias lojas. Lá longe, na Europa, seriam classificadas com a marca distintiva de Lojas com História.
Aproveita-se para impressionar o olfato e comprar especiarias. Elas estão disponíveis em abundância, o cravo, a noz-moscada e o macis, as canelas (a verdadeira e a cássia), o gengibre, a pimenta, o cardamomo, etc.. Depois de mergulhar os dedos em tanto saco, optei por uns modestos cominhos, envoltos numa doce e fina camada de açúcar, que se revelaram um delicioso preparo para refrescar a boca depois das comidas.
Uma importante atração histórico-cultural do bairro é o Mattancherry Palace Temple. Mais conhecido por Dutch Palace, apesar de ter sido construído pelos portugueses, em 1545, como um presente para Veera Kerala Verma, da dinastia de Kochi, mas como, no palácio, ocorreram muitas reformas, sob o domínio dos holandeses, é por isso conhecido como Palácio Holandês. O edifício alberga, hoje, um museu que desenvolve a temática, quer dos marajás, quer da cidade que governaram, Cochim.
Ao aproximarmo-nos do Bairro Judaico, que fica logo ali ao lado, começa a destacar-se a Sinagoga Paradesi. Está tão próxima do Dutch Palace, tão próxima, que os dois edifícios compartilham uma parede.
Sinagoga Paradesi viu, em 2018, serem celebrados, com pompa e circunstância 450 anos, desde a sua fundação, colada ao palácio, sob a proteção direta do marajá.
Em língua malaiala, Sinagoga Paradesi, quer dizer Sinagoga dos Estrangeiros, justificação que advém de ter sido frequentada por judeus estrangeiros. Muitos foram judeus sefarditas, que emigraram de Portugal e de Espanha, para Índia, no século XVI, ou foram os seus descendentes, e, mais tarde, judeus de outros países europeus, como por exemplo os holandeses.
Claro que a termo de "estrangeiros", gente de fora, era por comparação com a comunidade judaica que vivia, há séculos, na costa do Malabar e que entendia, os recém chegados, como uma concorrência desleal.
Curiosamente os frequentadores da Paradesi também eram reconhecidos, pela cor branquela da sua pele, sendo designados por "judeus brancos", devido ao contraste com a cor escura dos judeus indianos.
O antagonismo, entre "judeus brancos" e "judeus negros", numa mútua exclusão, terminou custando caro, a ambas as fações, e perpetuou-se até à morte do último homem judeu em Cochim.
Ver mais em: https://coca-maravilhas.blogspot.com/2021/04/sinagoga-paradesi-lugar-de-memoria-dos.html
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A torre do relógio para uma população eclética |
Acima da sinagoga, eleva-se, mais um outro ex-libris de Mattancherry, a Torre do Relógio, construída, em 1760, por Ezekiel Rahabi, um rico empresário judeu.
Tem a curiosidade do seu encomendador ter decidido que seria trilingue, pelo que os mostradores do relógio não usam o mesmo alfabeto: o que ficava de frente, para o palácio do marajá, apresenta caracteres malaialas; para o orientado, à Bazar Road e aos seus comerciantes, a opção usada foi a numeração romana, mais pragmática, mais comercial e mais internacional; o terceiro, com as inscrições em hebraico, estava obviamente orientado à sinagoga e ao Bairro Judaico.
Como esta Torre do Relógio nos demonstra que uma população eclética chamou a Mattancherry o seu lar.
E o quarto mostrador? Aquele que deveria preencher a parede voltado ao mar? Foi considerado desnecessário, nunca foi colocado, nunca existiu.
Subindo a Bazar Road, em direção a Forte Cochim, junto ao posto da Polícia, recolhida no interior de adro envolvido por altos muros, está a Igreja de Nossa Senhora da Vida, para os católicos apostólicos romanos que a frequentam e para outros naturais da terra, é a Igreja Jeevamatha.
A igreja está pintada de branco, ao seu lado, a casa paroquial tem uma presença reconhecível. O adro, vazio de gentes, está tranquilo, em ativo contraste com a dinâmica atividade do restante bairro.
Quando um olhar luso recaí sobre o portal de entrada da fachada principal, em pedra lavrada, reconhece, de imediato, no arco polilobado, a estética manuelina das primeiras décadas de Quinhentos. Sente-se em casa porque, junto a portais, com esta mesma estética, passou vezes sem conta, nas cidades, aldeias e lugares de Portugal.
Tudo se reduz a duas concretas perguntas: Não será este portal quinhentista, um testemunho vivo dum pequeno período em que foi "distribuída arte portuguesa pelo mundo»?; Não será, este portal, uma das primeiras manifestações duma linguagem artística de matriz europeia, na Índia?
Para terminar o passeio turístico, só pelo prazer de fugir ao intenso tráfico das pontes e de nos misturarmos com gentes que vivem o seu quotidiano, em Cochim, cidade costeira que se abre para a mar, escolheremos o ferry. Podemos ser indiferentes ao destino da carreira, seja a ilha de Vypin, ou a de Willingdon, ou a parte continental de Cochim, Ernakulam. Em qualquer percurso que nos calhe, garantidos estão: margens cheias de coqueiros e outro arvoredo de folhas perenes e sempre verdes, no qual se misturam e entrelaçam vários tipo de lianas; horizontes rasos de águas chãs de cor esmeralda.
Avistaremos, certamente, muitos edifícios e poucas embarcações de pesca tradicionais, malgrado navegarmos, no maior ecossistema de área húmida tropical da costa sudoeste da Índia, porque neste troço do Lago Vembanad, impera um dos maiores portos da Índia, o Porto de Cochim, importante enclave das rotas marítimas do Mar da Arábia (Oceano Índico) que se expande ao redor da Ilhas Willingdon e Vallarpadamum.