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Kuravilangad, uma não visita à Igreja de Marth Mariam (Kerala, Índia)


 






A Mãe de Cristo sobre um altar de doces


Deixámos Cochim com destino à cordilheira dos Gates Ocidentais, na parte oriental do estado Kerala, tendo como objetivo Thekkady, ou a Reserva de Tigres Periyar 

 
À saída previam-se 
cerca de 200km e umas previsíveis quatro horas e meia a rodar pelas estradas


A pernoite estava reservada para Kumily, nas Colinas de Cardamomo, cidade que é a porta de acesso direta ao Parque Nacional de Periyar, ao mesmo tempo que estabelece a ligação entre os estados indianos do Kerala e do Tamil Madu. 

  

À nossa direita, nos primeiros quilómetros, acompanharam-nos os meandros da imensa massa de água do Lago Vembanad, até que ponte sobre o rio Muvattupuzha alterou a nossa direção para este. 


Sob os benefícios do ar condicionado, ultrapassámos localidade, após localidade, e, em Kuravilangad, optámos por uma paragem para um chá e outras imprescindíveis e inadiáveis necessidades 

 
Confessamos que preferimos ficar pelos paladares e texturas de  Mattathil  Bakers & Restaurant, na Main Central Road, em detrimento de uma espreitadela à Igreja de Marth Mariam, importante centro de peregrinação mariano da Igreja Católica Siro-Malabar, que a tradição local diz fundada, na sequência da primeira aparição da Mãe de Cristo, no mundo. 


Milagre do qual, desta vez, não comungámos e desculpando-nos com o caminho pela frente, seguimos estrada, sem remorso de desperdiçarmos importante património construído e um significativo exemplo da diversidade cultural das vivências religiosas do Kerala. 


Sei que a Senhora, na sua misericórdia, não nos levou a mal e aceitando a nossa urgência em chegarmos  ao destino, abençoou a nossa escolha, do alto do seu “altar”, atrás do balcão principal por cima de gulodices e caixas de chocolate.






Aparição aos pastorinhos

Esta história mariana, conta-se de uma forma simples. Em Kuravilangad, do século I, como na católica apostólica romana Fátima, localidade portuguesa do século XX, uma visão da Virgem ocorreu a crianças que estavam cuidando do seu rebanho por entre arbustos. 


Em Kuravilangad,  também foi solicitado, aos pequenos pastores, a construção de uma igreja no local da aparição.  Por os homens terem cumprido a vontade de Nossa Senhora, a generosidade divina fez brotar uma milagrosa e perpétua fonte, no local, onde o edifício religioso foi erguido. Fonte que, segundo lenda, desde então até ao presente, jorra sem interrupções o seu caudal de água. Facto que não conferimos in loco. 

Pretende a tradição que os primeiros cristãos, na Índia, resultaram da ação direta de São Tomé, apóstolo de Cristo que, no século I, pregou com sucesso, nas importantes e populosas aldeias de Malabar (o atual estado do Kerala). São Tomé superou assim ao seu descrente comentário à ressurreição de Cristo “-Quero ver, para crer”, com a conversão de muitos que não O não viram, mas que Nele acreditaram.  

 
Seja como for, ou pela ação do apóstolo, ou pela ação de mercadores de tradição mesopotâmica e nestoriana, a existência de comunidades cristãs, na Índia, está atestada por fontes escritas desde o último quartel do século II, mas sempre vivendo como minoria numa região hegemonizada por hinduístas. 



Os portugueses e os cristãos do Malabar

 

Após a chegada dos portugueses, ao Malabar, logo no século XVI,  estas comunidades já são referidas, na documentação portuguesa, com a designação de Cristãos da Serra, ou como Cristãos de São Tomé, por associação ao apóstolo do qual reclamavam a paternidade espiritual.  

 

À época tinham um estatuto social, na hierarquia hindu das castas, considerado superior ao dos naires e o seu orgulho, em pertencer a uma casta superior, era tal que evitavam a conversão ao cristianismo das gentes de castas baixas. 


Os portugueses cientes que submissão dos Cristãos da Serra, a Roma, os ajudaria na aspiração de alcançarem a supremacia política na região, a partir de 1536, iniciaram um processo missionário, conduzido pela Companhia de Jesus, que deu origem a uma série de conflitos. 

  

Os cristãos de São Tomé tentavam a todo o custo preservar o seu antigo estatuto e não queriam ser confundidos com os novos cristãos, acabados de chegar ao território, a quem chamavam colambucos


Só, em 1599, com a realização do famigerado Concílio de Diamper, promovido pelo Arcebispo de Goa, Fr. Aleixo de Menezes, houve uma submissão aparente. Fr. Aleixo de Menezes tudo fez, para impor aos cristãos de S. Tomé, o rito latino tridentino e trazê-los dentro da jurisdição do Padroado português. 


Depois daquele sínodo, a Igreja Siro-Malabar foi teoricamente reformada de acordo com o modelo latino, exceto na língua por razões de conveniência.


 

Um rompimento definitivo


As determinações de Diamper não passaram de intenções ou, pelo menos, devido à profunda diferença de mentalidades entre a cristandade oriental e a cristandade latina, em questões de fé, fórmulas litúrgicas e na organização da Igreja, a submissão política e eclesial dos Cristãos de São Tomé à coroa portuguesa e à arquidiocese de Goa, acabou por não ser conseguida. 

 

O rompimento definitivo, teve lugar em 1653, com o chamado juramento da Cruz de Coonan, quando centenas de cristãos de São Tomé, em revolta, fizeram um voto público de desobediência total à autoridade portuguesa. 


À narrativa, mais pormenorizada, deste acontecimento impar, um dos mais notáveis eventos da história do cristianismo, na  Índia, voltaremos, quando explorarmos a Bazar Road, no Bairro de Mattancherry, em Cochim, num recanto sossegado, frente a um portal em puro estilo manuelino   

 

Mais tarde outros europeus chegaram à Costa do Malabar, instalaram-se e também procuraram alterar as dinâmicas políticas e religiosas, mas isso são outras histórias. São histórias que nada têm a ver com período que começou, com a resposta “Viemos em busca de cristãos e especiaria” dada, na manhã de 20 de Maio de 1498, por João Nunes (cristão novo, degredado e intérprete de Vasco da Gama) à pergunta feita por um mouro de Tunes, ao serviço do Samorim de Calecute: "-Que diabo vieram aqui fazer?" 


Atualmente, a Igreja Siro-Malabar, continua como uma comunidade minoritária, entre hindus e muçulmanos, sendo uma, entre as oito igrejas cristãs da Índia. 


Desde 1992, é, para a Igreja Católica Romana, uma Igreja Católica com o estatuto sui iuri. Tem sede em Ernakulam (parte continental de Cochim) pratica o rito litúrgico sírio oriental de tradição caldeia, usa o siríaco e o malaiala como linguagem litúrgica e conta com 2,9 milhões de almas, só na Índia. 


 





Um livro seiscentista
 

Há, sobre os cristãos de São Tomé e o concílio de Diamper, um livro português, escrito por de Frei António de Gouveia e editado em Coimbra, em 1606, sob autorização do Santo Ofício, com um título comprido de 19 linhas que, de forma simplificada, podemos deixar assim “A Jornada do Arcebispo Dom Aleixo de Menezes (…) foy as Serras do Malauar, & lugares em que morão os antigos Christãos de S. Thome, & os tirou de muytos erros & heregias em que estauão, & reduzio à nossa Sancta  Catholica, & obediencia da Santa Igreja Romana, da qual passaua de mil annos que estauão apartada".   


Neste relato pormenorizado, sobre o  Concílio de Diamper, encontramos, o pertinaz arcediago do último arcebispo caldeu, Mar Abraham, e os seus valores religiosos e práticas, em oposição aos valores religiosos e práticas latinas, do proselitista arcebispo de Goa, Dom Aleixo de Menezes.   

 
Pelas detalhadas informações que fornece, este livro, um inicial panegírico sobre a ação de Dom Aleixo de Menezes, tem um valor significativo para a  história dos Cristãos do Malabar.  


Provavelmente  foi o que decidiu o Padre Pius Malekandathil, sacerdote daquela  Igreja, a empreender uma tradução anotada em inglês,  que ao ser editada, em Cochim, em 2003,  tornou disponível uma fonte  histórica direta sobre o Concílio de Diamper e sobre o sequente interregno que causou, para os estudiosos locais.


Quase duas décadas, depois, daquela publicação, o concílio de Diamper e a latinização forçada da Igreja Malabar é um tema que, na Índia, causa uma discussão intensa e produz um lastro de estudos, artigos e livros científicos. 


 

L
 Para consulta em: https://purl.pt/17493

ROTA ÍNDIA DO SUL - EM BUSCA DE CRISTÃOS E


 ESPECIARIA

 Parte 1: De Cochim a Kumily - Por igrejas cristãs, peregrinações hinduístas e plantações tropicais 

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