Se quando partimos contávamos com quatro horas e meia de estrada, foram bem mais, não pelas nossas imprevistas visitas a pontos de interesse, ou pelos nossos stops fotográficos, alimentares e hidráulicos, e muito menos porque a estrada era má, ou porque o percurso final fosse a subir.
Só que subitamente, o trânsito intensificou-se e o tempo de viagem consequentemente alargou-se. A razão foi a partilha da estrada, com grupos de peregrinos hindus que se deslocavam, em camionetas e em carros particulares, e que, pelo grande número, atravancavam os espaços e retardavam a velocidade de todos.
Que importa o atraso quando os motivos são ranchos de hindus em peregrinação, que se locomovem em floridos transportes? Quem mais, podemos assim observar, em peregrinação, de forma tão colorida e engalanada por cordões de milhares de flores naturais?
Descobrimos que, na famosa reserva de tigres, o Parque Nacional Periyar, há também importantes locais de culto da religião hinduísta. São dois os antigos templos hindus, a saber, Sabarimala e Mangaladevi, que estão localizados dentro do limite interior do parque.
Desde que o asfalto melhorou os acessos e substituiu as antigas trilhas florestais, em especial, aos templos do complexo religioso de Sabarimala, um enorme fluxo de visitantes passou a ocorrer, durante as épocas festivas, ano após ano.
Só, à sua conta, entre novembro e janeiro, os templos de Sabarimala, nas colinas de Pathanamthitta (consagrados a Ayyappa, um jovem celibatário, Deus da floresta, com poder sobre os tigres) atraem mais de cinco milhões de visitantes, nos dias das mais importantes cerimónias. Estima-se que a totalidade dos devotos que se deslocam, ao complexo, corresponderá a mais de quarenta milhões, durante os quarenta e um dias da peregrinação anual, em que estão abertos.
Diz-se que, devido a Ayyappan, durante o período da peregrinação, nunca, algum tigre foi encontrado, ao longo dos caminhos da florestais que levam aos templos. Se hoje, aquelas trilhas estão reduzidas a poucos quilómetros a pé, no passado, eram meia centena de quilómetros para palmilhar e ter perigosos encontros com a vida selvagem.
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Peregrinos hindus locomovendo-se em floridos transportes |
No entanto, as mulheres, para que não houvesse a hipótese de estarem em idade fértil, a menos que tivessem menos de dez ou mais de sessenta anos, não podiam ir a Sabarimala fazer os rituais tradicionais, ou oferecer as suas orações.
A explicação decorria da essência do celibato de Ayyappan e do medo da divindade ser atraída, por uma mulher, para longe do seu santuário e da sua função.
Mas as tradições mudam, com resistência ou sem ela, sempre que as sociedades mudam e, em 28 de setembro de 2019, uma decisão do Supremo Tribunal considerou a medida discriminatória.
No entanto, devotos conservadores têm ajudado os responsáveis do templo a travar as tentativas de visita de mulheres, em idade fértil, com barricadas à entrada do complexo religioso e tumultos nas ruas.
Havia já, em dezembro de 2019, o registo de uma pessoa morta, donde a necessidade do estado do Kerala garantir proteção às poucas mulheres que, mesmo disfarçadas, ousaram contrariar a tradição.
Gosto de histórias que nos consciencializam sobre a igualdade das mulheres. Gosto de histórias de mulheres que são guerreiras pelo seus direitos, em participar em todas as vertentes da sociedade de forma ativa. Neste caso concreto, pelo direito à sua presença, no usufruto da sua fé, num dos locais de peregrinação mais importantes do sul da Índia.
Quanto aos festivais de Mangaladevi e Kannagi, as peregrinações ocorrem numa ruína histórica, com mil anos de existência, porque o templo de Mangaladevi, destruído em 1770, durante uma guerra, nunca mais voltou a ser reconstruído.
O ídolo panchaloha de Mangaladevi, preservado em Kambam, é trazido, às ruínas do seu antigo lar, uma vez, em cada ano, para a oportuna veneração das mulheres do Kerala e do Tamil Nadu.
A deusa Kannagi é igualmente adorada, por milhares de peregrinos que lhe vêm prestar tributo, nas ruínas, entre as 6h da manhã e as 17h da tarde, de um só dia do ano, o dia de lua cheia do mês de Chaitra (fins de Março a fins de Abril).
Kannagi é a personagem central do épico tamil, Silapathikaram, narrativa de como Kannagi, uma mulher tamil comum, tomada de fúria, se vingou de um rei da dinastia Pandia, de Madurai, que matara seu marido injustamente.
A viagem a este templo, localizado no interior profundo da floresta de Periyar, a partir de Kumily, parece ser, em qualquer ocasião do ano, uma experiência interessante e ousada. Só se chega de jipe e é obrigatória a permissão prévia, para a deslocação, do diretor do parque de Thekkady.
ROTA ÍNDIA DO SUL
EM BUSCA DE CRISTÃOS E ESPECIARIA
Parte 3: De Cochim a Kumily - Por igrejas cristãs, peregrinações hinduístas e plantações tropicais